Do Ritmo

O primeiro gesto inaugura um lugar, uma página, uma temporalidade que se suspende no silêncio e no espaço até ao gesto seguinte. E o ritmo surge quando esse primeiro gesto, reativado pela segundo, se fragmenta e se desloca na repetição e, sem perder a singularidade, se dissemina na multiplicidade.

O ritmo do gesto e do desenho, associado ao desejo e ao carácter performativo da matéria, a conceptualização minuciosa dos detalhes e a potência do acaso, são eixos estruturais na obra de Vera Mota onde as fronteiras disciplinares entre o visual e o performativo se contaminam em permanência, e que encontram no livro de artista intitulado “Ritmo” (2019) um caso exemplar. Sublinhando uma parte do corpo de pouca visibilidade, a orelha, a artista elabora um belíssimo exercício de desenho que parte de um material — um fio embebido em óleo e tinta negra — e da sua ação que compõe um traçado anatómico virtual para o abandonar sobre folhas de papel. Estes gestos reiterados imprimem não somente o desenho subtil e irregular do traço negro, como alastram uma mancha de óleo evocativa da morfologia e tonalidade da orelha. Os múltiplos dos desenhos, todos diferentes na sua semelhança, são gesto, linha, mancha, odor, ritmo e movimento.

Articulando a matéria num jogo com o acaso, o fio encontra o seu desenho e a sua forma sem outro propósito que a sua própria orquestração, visual e intuitiva. Se cada desenho singular é uma impressão performativa do gesto e da matéria, o seu desdobramento rítmico acentua o espaço e o tempo de uma obra que vai além de um abstracionismo pictórico, convocando a sensibilidade háptica e performativa do observador.

Alexandra Balona